domingo, 1 de outubro de 2023

"O Avanço da Fênix" e a natureza humana


"O Avanço da Fênix" (em inglês, "Fênix" no plural) foi uma daquelas gratas surpresas na Netflix. De tanto assistir séries coreanas (muitas, de época), os algoritmos do meu perfil acharam de me recomendar outras séries asiáticas. Que bom. "O Avanço da Fênix" é uma série chinesa e de época, daquelas que requerem um tanto de paciência para assistir, pois elas acontecem em uma outra configuração de tempo. Mas pense que isto é positivo, pois nos força a desacelerarmos e a entendermos o tempo da história. 

É uma série de 70 episódios e, além da trama em si, o que me motiva a escrever sobre ela é que esta obra de arte estará em breve indisponível na plataforma (27/10/23), então logo após a leitura desta crítica, corre lá pra ver.

Como uma série chinesa de época, tem todo um contexto ético-político muito interessante de ser analisado. A honra, o respeito aos anciãos, o código de ética praticado. Mas, no meio disso tudo, a busca pelo poder e aí passamos a conhecer melhor as personagens da história. Passamos a enxergar um pouco da humanidade delas. Cada uma com suas aspirações e interesses. Entre elas, uma jovem mulher herdeira de uma dinastia derrotada e banida. Ao seu lado, um príncipe que busca "erradicar o mal" e, nessa busca, vale-se do mesmo mal que quer erradicar.

Representado pelo príncipe e por seus irmãos também herdeiros, as contradições do ser humano e aquilo que eles podem mostrar de mais perverso. Na busca pelo trono, vemos conspirações por todos os lados, enganos, mortes e frustrações (ou como eu digo, "treta por cima de treta")

E o que falar do figurino e do cenário? São belíssimos e quase que andam lado a lado com os outros elementos que nos transportam para outro tempo e lugar. A meu ver, são coadjuvantes nessa empreitada. Junto com o texto, a linguagem de câmera, o tempo da trama, o figurino e o cenário nos levam a explorar uma China ainda pouco conhecida aqui por nós ocidentais.

Devo confessar que não estou habituada com produções chinesas e acho até difícil falar sobre os atores, mas faço aqui uma menção para a protagonista da série, a atriz Ni Ni (Feng Zhiwei) que mostra uma atuação primorosa.

Por tudo isso, é uma série que vale o investimento de tempo. Você vai sair, no mínimo, refletindo um pouco mais sobre a natureza humana. Então corre lá antes que fique indisponível.

sábado, 10 de setembro de 2022

Do Rock in Rio, música de Marte e Etnomusicologia

     Imagem: @actionvance


Hoje é sábado e vou ficar em casa para assistir ao Rock in Rio. Deixa só minha mãe (vulgo, D.  Encrenca) ouvir isso, kkk... Essa é uma das benesses de morar sozinha. A TV é minha... Mas, brincadeiras à parte, isso suscitou em mim muitas lembranças e reflexões.

Fui a duas edições do festival. Não me pergunte quando! Lembro que vi pela primeira vez uma das minhas bandas favoritas: Dave Matthews Band e também o lendário Neil Young. O cara é mesmo uma lenda! Na época, jovem que era, não me passava muita coisa pela cabeça a não ser "carpe diem": aproveitar o momento, curtir a juventude, viver a vida, essas coisas todas que passavam na cabeça de qualquer jovem normal dos anos 2000. Naquela época, já professava a fé cristã e vivia dentro da igreja aquele dilema "música gospel x música do mundo". Mas pra uma "roqueira" que ouvia Mozart, nada disso fazia sentido ALGUM na minha cabeça. Lembro de ouvir música medieval (cantigas de Santa Maria, pra piorar) e me perguntar como Deus era tão bom que dava inspirações tão belas ao homem. Então eu simplesmente "amassei" todas as críticas e todas as acusações à "música do mundo" e joguei no lixo da cozinha.

Não digo que façam o mesmo que eu... Mas, na época, isso meio que me resolveu muita coisa. Sentia-me culpada por ouvir "música do mundo"? Mas neeeem de longe! Na minha cabeça de musicista (eu já tocava piano, violão, já cantava) eu estava contemplando o belo e o belo vinha de  Deus. 

As coisas não são tão simples assim, mas hoje, etnomusicóloga e professora de música e acima de tudo isso, cristã, entendo que tudo o que os nossos sentidos apreendem precisam ser considerados à luz da palavra de Deus. Precisam ser entendidos sob uma perspectiva noética. Se você me perguntar: "Esta música 'x' é boa ou é ruim?" Eu vou, provavelmente, responder: "depende..." Ou então algo como "sim e não". Acredito que o principal problema seja reduzir algo tão complexo como uma obra de arte (aqui "obra de arte" enquanto produto artístico feito pelo homem). O homem é complexo. E como reduzir algo assim a categorias "bom ou mau"? 

Já observou uma casa ou uma pessoa atentamente? Se você conhece alguém simpático pela primeira vez, você vai, provavelmente, gostar dessa pessoa. Mas basta um pouco mais de tempo para que você perceba os defeitos dela. O nariz vai lhe parecer um pouco grande, talvez, o riso, escandaloso, a personalidade, extrovertida demais... Enfim, não há como conhecer alguém perfeito. Como poderíamos nós exigir que o produto feito por mãos humanas seja também perfeito. Não, não é. E isso se aplica a qualquer obra de arte. Seja ela produzida por cristão ou não cristão. 

Mas isso nos leva a uma outra questão: seria uma obra produzida por cristãos  igual a de um não cristão? Sim e não (risos). Como diferenciar aquilo que é produzido com os mesmos padrões? Considerando a música ocidental, como fazer algo diferente se ambos cristãos e não cristãos temos as mesmas sete notas musicais? E aí, amigo leitor(a), aquela diferença "música do  mundo x música gospel (ou evangélica)" vai por água abaixo. Mas queremos ir além da forma aqui e, neste caso, a pergunta persiste. Como responder a esta questão. Próxima parada: etnomusicologia.

Não tentarei aqui explicar o que estudei exaustivamente por dois anos no mestrado, mas algo simples de se dizer é que etnomusicologia seria algo como um estudo antropológico da música e isso só é possível porque o homem produz música e quando ele a compõe, a compõe para uma comunidade, ele está, de certa forma, orientado pelas ideologias daquela comunidade. Assim, é impossível separar o homem de sua obra e sua obra do contexto em que vive. Por isso todos nós, em um sentido, ouvimos "música do mundo". Como brinca um jovem pastor conhecido pelo ciberespaço, "Até onde eu sei, não tem música em Marte, nem em Vênus, então eu ouço 'música do mundo' mesmo".

Pois muito bem. Mas não haveria então nenhum tipo de distinção entre música cristã e não cristã? Quando essa pergunta explode no meio dos meus pensamentos, não me vem à mente as músicas que ouço na minha igreja local, mas as canções das quais ouço só falar cujas letras e ritmos mais se assemelham a músicas não cristãs do que cristãs. Gostaria muito de citar exemplos aqui, mas como são canções das quais não lembro, eu realmente não tenho como citar. Talvez expressões como "apaixonado por Jesus" e coisas assim. Mas sei claramente a sensação que é ouvi-las; é como ver alguém vestido de fúcsia em pleno funeral. Destoa. Agride os ouvidos. Incomoda. O ponto é se música é algo produzido por homens e não se pode separar o homem de sua obra e, por sua vez, este homem está organicamente ligado a uma comunidade, o que envolve a criação artística é tudo o que envolve o seu criador.

Cada homem cria, elabora, produz a partir de uma cultura. Não se poderia esperar que Beethoven compusesse "Bohemian Rhapsody" ou que Queen escrevesse "A paixão segundo São Mateus". A música é feita para um ouvinte e o ouvinte está inserido em uma cultura. Mas, se por outro lado, o que dizer de músicas diferentes, de períodos diferentes que parecem dizer o mesmo? Daí, vamos precisar encontrar esses elementos que se encontram. São elementos mais da ordem do conteúdo do que da forma (separação meramente didática aqui). Um homem do século 21 pode partilhar da mesma visão de Bach que compôs "A paixão segundo São Mateus" no tocante à sua fé. Então estamos falando de uma


mesma "visão de mundo". E isso é algo que todo mundo tem. Todo homem se apropria/constroi uma visão de mundo a partir da qual ele opera no mundo. 

Por isso não acredito em divisões que desconsiderem o aspecto cultural e ideológico da arte. "Esta música é boa ou não?" Depende... O que ela lhe diz? Há possibilidade de diálogo? De alguma forma, ela lhe aponta a beleza do Criador? Qual é a visão de mundo que está por trás dela? Sua relação com ela é de obediência cega ou você a confronta?

Gosto muito de Projeto Sola, os Arrais, mas, em todo um universo que me foi ofertado de belíssimas canções, de séculos e culturas diversas, por que raios eu passaria todos os meus anos ouvindo somente estas bandas que sitei?' Sigo ouvindo Dave Mattews, entendendo que são músicas produzidas por homens e, portanto, pecadores que carecem da graça de Deus (assim como os meninos do Sola). Homens que têm suas crenças, suas visões de mundo, suas idiossincrasias. Ouço nas canções harmonias complexas, células rítmicas ricas e empolgantes e também ouço suas histórias cotidianas porque música é tudo isso.

Voltando ao Rock in Rio, entendo que minha mãe, uma senhora de 84 anos, convertida há anos, que frequentou igreja neopentecosal e cultiva em si diversos tipos de "pré-conceitos" tenha muita (muita mesmo) dificuldade de entender isto, mas espero que você, leitor, possa estar em paz com o que aprendeu. Espero tê-lo(a) ajudado.

sábado, 2 de julho de 2022

Uma boa receita de rock

 




Certo dia, eu estava andando na rua quando olhei para a traseira de um ônibus. Na janela, uma propaganda de uma banda que parecia "cool", com um nome, no mínimo, curioso e de visual bem rock n' roll para os padrões da geração Z. Então, assim que alcancei a calçada, dei meus "googles" para descobrir que banda era aquela. Alguns links depois, percebi que já havia topado com eles, mas, na época, assisti um vídeo (vídeo "vídeo" mesmo) e pensei: "Ah, é igual Led Zeppelin". Sim, amigos... Estou falando de "Greta Van Fleet"!


Meu primeiro encontro com a banda não foi lá essas coisas como vocês podem supor. Os primeiros acordes até estavam me ganhando, mas quando Josh Kiszka abriu a boca, eu pensei: "Meu Deus, Robert Plant renascido!" e, na época, esqueci de fazer algo que um crítico jamais deve deixar de fazer: conhecer primeiro. Foi somente com a propaganda no ônibus que me interessei em investigar e saber como foi que meninos tão jovens resolveram fazer rock "dasantiga". E vamos nós!


Quase que inevitavelmente, a primeira coisa que me saltou aos ouvidos foi a voz de Josh.. Ouvi e ouvi e vi... Procurando, confesso, algumas "escorregadelas". Corrijam-me se eu estiver errada, mas acredito que ele seja autodidata no canto. De qualquer modo, o que ele nos apresenta é uma voz com invejável extensão vocal, de ótimo suporte respiratório e com um brilho que parece ter sido forjado nos ensaios de garagem mesmo. O garoto fez direitinho o trabalho de casa. 


E a guitarra? Banda de rock que é banda de rock tem que ter uma guitarra presente e, não raro, protagonista. E GVF tem. Ouvindo o Zeppelin e o GVF percebo que a guitarra do GVF é mais "sujinha", parece que tem um acento a mais de overdrive. É uma guitarra, por vezes, clássica. É uma assinatura da banda. 


O que dizer da composição teclado, guitarra e bateria? Nas faixas "Broken Bells" e "Flower Power" caiu como uma luva! Quase com um certo tempero de "The Doors" no teclado. Mas Sam (que assume tanto o teclado quanto o baixo) também alterna o tempero com uma boa dose de baixo regado a frases modestas, mas expressivas. Destaque para a faixa "Safari Song" que revela um lindo diálogo entre baixo, guitarra e bateria.


Para coroar, temos composições que parecem ter sido inspiradas nas raízes de blues e rhythm n' blues do rock n' roll mais "raiz". Quase como se os meninos tivessem se encapsulado em uma viagem no tempo e nos presenteassem  com uma mesa farta de belos timbres e acordes que conversam muito bem entre si. E sigo além, a música de GVF é pictórica. Ela nos descreve cenas e narrativas de um outro tempo, de outra esfera. É uma música transcendental. E aí, especificamente, neste ponto, encontro a maior semelhança com o Led Zeppelin. Mas, dizer que GVF é cópia do Zeppelin, pura e simplesmente, é limitar ambas as bandas. Se por um lado, Zeppelin tem faixas que flertam com a música indiana ("The Battle of Evermore", por exemplo), GVF tem todo um caminho pela frente ainda a dizer a que veio. Só posso dizer que até o momento, estou aproveitando.

domingo, 10 de outubro de 2021

Sobre "Alta Fidelidade", a música e a vida

 



Ontem assisti "Alta Fidelidade". De novo. Lembro que quando vi a primeira vez, gostei muito, mas não sabia precisar muito bem por quê. Não que eu saiba agora, mas depois de viver as experiências que vivi, posso ter uma noção do porque vale a pena passar duas horas em frente a tela para conhecer esta história.


O título do filme no original é exatamente o mesmo e ele já dá uma pista de que o filme não trata apenas de relacionamentos, mas é também um filme sobre música. A história começa com Rob sendo abandonado por sua namorada, Laura. A cena se passa na casa de Rob e ele tenta demover Laura da ideia de ir embora a qualquer custo. Sua namorada não cede e deixa Rob com uma série de questionamentos, dentre eles por que essa situação se repete em sua vida. Assim, ele lista seus "top 5" términos e vai contando a história de cada um deles e cada um possui sua própria trilha sonora. Música e vida se entrelaçam, revelando o que está mais intricado nas personagens. Assim, cada relacionamento de Rob tem uma trilha sonora. E não só na trama, mas a música tem um importante papel no filme até mesmo pelo fato dele ser dono de uma loja de discos.


Ao se perguntar por que sempre acaba abandonado, Rob segue revisitando seu passado e também lidando com seu rompimento atual. Nesse caminho, ele descobre e revela muito de si. Ele se mostra um cara egoísta, com seus medos, obsessivo e chega mesmo a distorcer a realidade se vitimizando. Acredito que por isso mesmo o filme encanta. Não se trata aqui da heroína típica de comédias românticas dos anos 90, mas, sim, um homem, mal resolvido, com suas questões e seus medos. Por extensão, pode se tratar de qualquer pessoa real.


O filme fala também da vida. Rob projetava nos seus relacionamentos sua sede existencial, seu desejo de saciedade. E, revivendo cada um deles, Rob se descobre despido de qualquer coisa que o pudesse proteger e completar. No fim, Rob descobre que, mesmo diante da impossibilidade de saciar nossa sede em um relacionamento, ele pode viver para uma pessoa apesar das suas fraquezas. E aqui a música novamente se apresenta uma forte interlocutora, sinalizando com “I believe" de Steve Wonder que ter esperança é uma necessidade humana. Gostei muito desse final. Não que seja surpreendente ou inusitado. Mas ele mostra o quanto pessoas de verdade têm o potencial de recomeçar.

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

"Relatos do Mundo", Tim Keller e o sofrimento









 Enquanto estou aqui parada sem saber como começar esse texto enquanto vou repassando os pontos que quero abordar. Bem, todo fim de semana gosto de dedicar algum tempo à sétima arte. Houve um tempo que eram clássicos, mas hoje em dia sucumbi àquela tão conhecida plataforma que vocês conhecem. 

Achar um bom filme é como fazer uma boa descoberta. Não limito aqui "bom filme" ao orçamento, mas algo que capture seu coração e te tire do lugar comum. Vou deixar de fazer suspense e entrar logo nos pormenores. Assisti ontem (ou há alguns dias, pois não sei quando essa postagem vai ser publicada) a "Relatos do Mundo". Já estava na minha lista há algum tempo, mas sabe como é... Escolher um filme ou não depende do humor do dia. O filme nem tem um enredo, assim, extraordinário. A trama conta uma história que já vimos algumas vezes em diversos filmes. Mas então por que falar dele? Primeiro, porque tem o selo "Tom Hanks" de qualidade. Segundo, porque ele aborda o sofrimento de perspectivas diferentes e porque estou lendo "Caminhando com Deus em meio à dor e ao sofrimento" do Tim Keller. O diálogo entre os dois é, simplesmente, inevitável.

Antes de discutir os pontos que me saltaram à vista, é preciso entender o contexto do filme. E não vou me desculpar por escrever sem amarras. Ou seja, se houver spoiler, spoiler haverá. No velho oeste americano, quando um veterano de guerra encontra uma órfã que convivia com os índios Kiowa, ele decide levá-la aos seus parentes ainda vivos, enfrentando, junto com a garotinha, diversos perigos na jornada. Captain Kidd (Tom Hanks) ganhava a vida lendo as notícias de outras cidades nas comunidades em que passava e, viajando com Johanna (Helena Zengel), os dois acabam criando um vínculo de afeição.

A historia dos dois é permeada por sofrimento, mas o primeiro a ser evidenciado é o de Johanna. A pequena órfã viu seus pais e sua irmãzinha morrerem de forma hedionda pouco antes de ser encontrada por Kidd. A forma como ela lida com o sofrimento é bem diferente da do capitão. Enquanto ele visualiza uma linha reta, um movimento que o leva a não revisitar o lugar de sofrimento, ela vê um círculo. Em determinado ponto da viagem em que os dois conseguem, apesar da barreira da linguagem, se entender, ela deixa explícito que é preciso revisitar o sofrimento para se seguir em frente. Enquanto Kidd não vê sentido no sofrimento, ela o enxerga como um ponto de partida. 

Ainda, em outros pontos do filme, a visão de Kidd sobre a dor vivida o guia em relação à Johanna. Para ele, o sofrimento deve ser evitado a qualquer custo. Por isso ele diz a Johanna para não entrar na casa onde seus pais foram mortos. Para Kidd, o importante é manter a pequena órfã longe daquilo tudo. Mas Johanna disse: "Johanna go". Sim, ela foi. Ela entrou na casa, viu as manchas de sangue, viu tudo desarrumado, pegou sua bonequinha e saiu dali. Saiu pronta pra seguir viagem. Kidd ficou de longe olhando. A ele cabia levá-la a salvo para longe do lugar de dor.

Além de Johanna, Capitão Kidd tinha ele mesmo suas próprias dores. Serviu em duas guerras e deixou a esposa a sua espera em uma cidade. As ações de Kidd, em alguns momentos, pareciam uma vã tentativa de redimir seu passado de sangue. Até sua disposição em ajudar Johanna. Quanto à esposa, ele sabia que, em algum momento, teria de lidar com ela e com o seu passado antes da guerra. Em algum momento, teria de voltar. E é quando sua viagem com Johanna chega ao fim que ele retorna à sua cidade e descobre que sua esposa faleceu e não está mais a sua espera. Em seu diálogo com um velho amigo, Kidd deixa claro que seu sofrimento era uma maldição. Ele estava sendo punido pelos crimes de guerra através da morte da esposa. Ao que seu amigo retruca: "é apenas uma doença".

Em "Caminhando com Deus em meio à dor e ao sofrimento", Tim Keller começar por abordar o sofrimento sob diferentes perspectivas. Kidd seria um moralista, pois seu pecado é a causa do mal que sobreveio à sua esposa. E Johanna entenderia o sofrimento como parte da vida. A questão é que a forma como entendemos o sofrimento pode impactar diretamente nossas ações. Podemos, simplesmente, correr dele desesperadamente ou abraçá-lo como Cristo ensinou e não, isso nada tem a ver com masoquismo, mas com dar ao sofrimento o lugar que lhe cabe: os pés da cruz.

A fé cristã, como aponta Keller, nos ensina a ver que o sofrimento tem propósito. Ela transcende o moralismo e o secularismo de nossos dias. Nem o sofrimento é maldição (como para Kidd), nem uma fatalidade (como para Johanna). 

Ainda não terminei o livro de Keller e por isso seja precipitado esmiuçá-lo. Mas o diálogo com o filme me pareceu tão evidente que merecia alguma reflexão. O ponto é como nossa visão sobre o sofrimento norteia nossas atitudes e nossa relação com o outro. Isso impacta diretamente nossas ações. Ou nos torna capazes de seguir adiante, processando e ressignificando a dor ou nos prende a ela, de alguma forma. O melhor é que não tenhamos medo do sofrimento, mas que vivamos a alegria em meio a dor.

domingo, 16 de maio de 2021

A obediência é anterior à "felicidade"

 

(Noah Siliman/unsplash)



Vou começar este texto já concluindo: sua obediência a Deus é anterior à sua "felicidade". Respire e leia novamente: "sua obediência a Deus é anterior à sua 'felicidade'". Há tanto o que dizer sobre isso que as ideias estão, neste exato momento, brigando para serem a primeira. Vou começar com a "felicidade", sim, entre aspas porque esta não é verdadeira (porque nem sempre isto está óbvio).

Todos nós temos uma ideia de felicidade que é, na maioria das vezes (creio), dinâmica e se amolda às nossas vivências. Você pode, por exemplo, quando pequeno ter tido o sonho de ser professor e pensar que para ser feliz, teria de se tornar um. Nesse sentido, felicidade é algo que se projeta para o futuro. Não é algo pertencente ao presente. Por outro lado, você também pode ter pensado que felicidade é vivenciar os momentos em família ou com amigos. E então, precisamente, nesses momentos, você é feliz. Nos dois exemplos, o conceito de felicidade é construído a partir de algo em que acreditamos ser "felicidade". Se considerarmos, felicidade como construção, precisamos ser honestos e nos perguntar: a partir do que se dá a construção do que conceituamos "felicidade". E esta é, por agora, a pergunta mais necessária a se fazer. 

Podemos entender "felicidade" algo como: "para ser feliz, preciso de X ou Y" (e então levar em conta tanto a projeção para o futuro quanto as experiências vividas no presente), mas há ainda um conceito de felicidade que só pode existir em oposição ao de sofrimento. Se estou em dor, é possível que compreenda "felicidade" como sendo a ausência dessa dor: "para estar feliz, preciso me livrar de X ou Y". O ponto até então é que, seja qual for a base para esses conceitos de "felicidade", eles não abarcam a perspectiva paulina, não harmonizam com Filipenses e outros escritos. Vou então, com muito temor, refletir sobre esta perspectiva de felicidade. 

O que Paulo nos ensina? Primeiro, vou falar sobre felicidade X sofrimento. Paulo sofreu. Essa é uma constatação. Mas não podemos dizer que era infeliz. Um homem infeliz não diz "alegrai-vos". Um homem infeliz não ouve "a Minha graça te basta" e responde "De boa vontade, pois, me gloriarei nas minhas fraquezas, para que em mim habite o poder de Cristo." (2 Co. 12:7). Um homem infeliz é uma pessoa insatisfeita. Nada lhe basta, nada lhe preenche. Mas a Paulo, bastava a graça do Altíssimo: "a Minha graça te basta". Então ele era um homem satisfeito. Uma pessoa satisfeita não precisa de X ou Y para ser feliz porque ela JÁ TEM  o que precisa. O discurso de Paulo é consonante ao do salmista, no salmo 23 (o Senhor é meu pastor, de nada terei falta). 

Ainda sobre o sofrimento, Paulo tinha um "espinho na carne" que lhe causava dor e buscou a Deus, pedindo a Ele que o livrasse dessa dor. Pediu três vezes, ou seja, ele insistiu. Não era simplesmente algo que não o incomodasse. E Deus não retirou dele esta dor. O sofrimento de Paulo não se opunha à sua felicidade. Os dois coexistiam. Paulo era feliz APESAR do seu sofrimento. E agora cabe um parêntesis.

Somos treinados a evitar o sofrimento a qualquer custo: "Desce daí, se não vai cair/Tome este remédio pra dor de cabeça/ Passe esta pomada para hematomas/Evite tal pessoa, pois ela lhe causa dor". Não estou aqui fazendo uma apologia da dor ou dizendo que não devemos tratá-la. Pelo contrário! Imagine que sua dor de cabeça seja causada por problemas de visão e você só trata com analgésicos. Você vai sufocar a dor, mas não vai tratá-la. O que Deus faz com Paulo é TRATAR a dor ao invés de extirpá-la porque isto era necessário e a dor tinha um propósito ("para que em mim habite o poder de Cristo").

Paulo escolheu obedecer. Abraão também. Lembremos de seu exemplo: levou Isaque e a lenha para o holocausto e seguiu para o lugar de sacrifício. Duvido muito que Abraão estivesse feliz, caminhando para o o holocausto, tendo a seu próprio filho como "cordeiro". Mas ele escolheu obedecer. E, somente por obedecer, Abraão pode ouvir: "esteja certo de que o abençoarei e farei seus descendentes tão numerosos como as estrelas do céu e como a areia das praias do mar" (Gn. 22:17).

O ponto de convergência entre Paulo e Abraão se dá no salmo 37, principalmente nos versos: 

"Confia no Senhor e faze o bem; habita na terra e alimenta-te da verdade.
Agrada-te do Senhor, e Ele satisfará os desejos do teu coração.
Entrega o teu caminho ao Senhor, confia nele, e o mais ele fará." 
(v. 3-5, grifo meu)

É, precisamente, no "agrada-te do Senhor" que reside o conceito de felicidade cristã, mas tal conceito não é possível sem confiança: "confia no Senhor". É preciso confiar e conhecer a bondade de Deus e sua soberania para poder entregar a Ele nosso caminho. Logo, temos aqui uma felicidade que não se pauta sobre circunstâncias terrenas, experiências presentes, futuras ou, simplesmente, ausência de dor. O que temos é uma obediência anterior à felicidade, temos o "agrada-te" primeiro e, somente nesse deleite e alegria que, em si, já é o estado de felicidade, a satisfação dos desejos de nossos corações agora consonantes à vontade do Pai. Portanto, só é possível sermos satisfeitos quando a obediência à ordem "agrada-te" é anterior à satisfação dos desejos do nosso coração, pois só é possível a satisfação dos desejos que harmonizam com a vontade de Deus. Então se você se deparar com alguma situação ou escolha na qual se oponham obediência a Deus e felicidade, faça a escolha óbvia: obediência.








quinta-feira, 29 de abril de 2021

Amiga poesia

 



Amiga poesia, 

Você que me é querida, sensível e voraz. Perdoe-me por hoje, só por hoje talvez. Mas, neste dia de céu nublado e quarto minguante, vou preferir prosa. Vou destilar, fruir impressões tais, caminhar por aqui e ali, desbravar matas e encontrar pequenos paraísos perdidos de mim. Pequenas doses de alegria que este momento me concede. E vou ter um dedinho de prosa aqui comigo mesma. Eu sei, pareço Narciso, mas acredite: é só impressão. Você, leitor, é bem vindo para ouvir e quiçá me ofertar com sua simpatia. 

Como ia dizendo, hoje me fiz ouvir. Com uma voz firme, gentil e precisamente clara. Perguntei, incomodei, cutuquei. E ouvi. Sim, ouvi com atenção, busquei empatia, busquei diálogo. Uma palavra que percorresse todo o caminho entre meu ser, meu coração, mente e o coração e mente do outro. E ouvi. 

De início, palavras vagas, confusas, arredias... Mas me calei sobre isso e pensei: talvez lhes sejam necessárias, talvez não as saiba tão vagas. E ouvi. Entendi que trocávamos palavras apenas. As minhas, desejosas de nomes e indicações, apontavam uma direção. Mas as que ouvia... Não cumpriam nenhum papel além de serem jogadas ao vento. Assim, cada uma voando, voando... Sem indicar nenhum paradeiro. E montei o quebra-cabeça. Bem... Do meu jeito, com as peças que me foram dadas a muito custo.

Não me fez mais feliz ou triste a imagem que as palavras conferiam... Apenas constatei. Apenas vi. E percebi a fragilidade e confusão do meu interlocutor. E com uma última frase de apoio, distante e desconsertada, eu o deixei pontuar e finalizar nossa conversa.

Não me entristeceu a fraqueza com que se indispôs a se revelar... Cobriu-se com um véu e se fez pretensamente presente em nosso diálogo. Que pena... Mas é tudo o que irei dizer sobre isso. Afinal, despir-se é uma escolha.

No mais, a alegria me brindou pela coragem. A coragem em, despudoramente, erguer minha voz. Pois, sim, tenho voz e ela se fez perfeitamente audível. E apontei claramente o caminho para o qual eu precisava seguir e, para seguir, precisava saber... E soube. E vi. Entendi. 

Então minha amiga, compreenda que, por vezes, precisamos deixar as palavras correrem livres, voláteis, etéreas. Aquelas que ficam, por algum motivo as fazem. Aquelas que se vão foram destinadas a isso. Quanto a mim, falei, disse, indaguei, cutuquei e constatei. E agora, vamos a próxima coisa.


Créditos imagem: Sushil Nash (unsplash)