sábado, 10 de setembro de 2022

Do Rock in Rio, música de Marte e Etnomusicologia

     Imagem: @actionvance


Hoje é sábado e vou ficar em casa para assistir ao Rock in Rio. Deixa só minha mãe (vulgo, D.  Encrenca) ouvir isso, kkk... Essa é uma das benesses de morar sozinha. A TV é minha... Mas, brincadeiras à parte, isso suscitou em mim muitas lembranças e reflexões.

Fui a duas edições do festival. Não me pergunte quando! Lembro que vi pela primeira vez uma das minhas bandas favoritas: Dave Matthews Band e também o lendário Neil Young. O cara é mesmo uma lenda! Na época, jovem que era, não me passava muita coisa pela cabeça a não ser "carpe diem": aproveitar o momento, curtir a juventude, viver a vida, essas coisas todas que passavam na cabeça de qualquer jovem normal dos anos 2000. Naquela época, já professava a fé cristã e vivia dentro da igreja aquele dilema "música gospel x música do mundo". Mas pra uma "roqueira" que ouvia Mozart, nada disso fazia sentido ALGUM na minha cabeça. Lembro de ouvir música medieval (cantigas de Santa Maria, pra piorar) e me perguntar como Deus era tão bom que dava inspirações tão belas ao homem. Então eu simplesmente "amassei" todas as críticas e todas as acusações à "música do mundo" e joguei no lixo da cozinha.

Não digo que façam o mesmo que eu... Mas, na época, isso meio que me resolveu muita coisa. Sentia-me culpada por ouvir "música do mundo"? Mas neeeem de longe! Na minha cabeça de musicista (eu já tocava piano, violão, já cantava) eu estava contemplando o belo e o belo vinha de  Deus. 

As coisas não são tão simples assim, mas hoje, etnomusicóloga e professora de música e acima de tudo isso, cristã, entendo que tudo o que os nossos sentidos apreendem precisam ser considerados à luz da palavra de Deus. Precisam ser entendidos sob uma perspectiva noética. Se você me perguntar: "Esta música 'x' é boa ou é ruim?" Eu vou, provavelmente, responder: "depende..." Ou então algo como "sim e não". Acredito que o principal problema seja reduzir algo tão complexo como uma obra de arte (aqui "obra de arte" enquanto produto artístico feito pelo homem). O homem é complexo. E como reduzir algo assim a categorias "bom ou mau"? 

Já observou uma casa ou uma pessoa atentamente? Se você conhece alguém simpático pela primeira vez, você vai, provavelmente, gostar dessa pessoa. Mas basta um pouco mais de tempo para que você perceba os defeitos dela. O nariz vai lhe parecer um pouco grande, talvez, o riso, escandaloso, a personalidade, extrovertida demais... Enfim, não há como conhecer alguém perfeito. Como poderíamos nós exigir que o produto feito por mãos humanas seja também perfeito. Não, não é. E isso se aplica a qualquer obra de arte. Seja ela produzida por cristão ou não cristão. 

Mas isso nos leva a uma outra questão: seria uma obra produzida por cristãos  igual a de um não cristão? Sim e não (risos). Como diferenciar aquilo que é produzido com os mesmos padrões? Considerando a música ocidental, como fazer algo diferente se ambos cristãos e não cristãos temos as mesmas sete notas musicais? E aí, amigo leitor(a), aquela diferença "música do  mundo x música gospel (ou evangélica)" vai por água abaixo. Mas queremos ir além da forma aqui e, neste caso, a pergunta persiste. Como responder a esta questão. Próxima parada: etnomusicologia.

Não tentarei aqui explicar o que estudei exaustivamente por dois anos no mestrado, mas algo simples de se dizer é que etnomusicologia seria algo como um estudo antropológico da música e isso só é possível porque o homem produz música e quando ele a compõe, a compõe para uma comunidade, ele está, de certa forma, orientado pelas ideologias daquela comunidade. Assim, é impossível separar o homem de sua obra e sua obra do contexto em que vive. Por isso todos nós, em um sentido, ouvimos "música do mundo". Como brinca um jovem pastor conhecido pelo ciberespaço, "Até onde eu sei, não tem música em Marte, nem em Vênus, então eu ouço 'música do mundo' mesmo".

Pois muito bem. Mas não haveria então nenhum tipo de distinção entre música cristã e não cristã? Quando essa pergunta explode no meio dos meus pensamentos, não me vem à mente as músicas que ouço na minha igreja local, mas as canções das quais ouço só falar cujas letras e ritmos mais se assemelham a músicas não cristãs do que cristãs. Gostaria muito de citar exemplos aqui, mas como são canções das quais não lembro, eu realmente não tenho como citar. Talvez expressões como "apaixonado por Jesus" e coisas assim. Mas sei claramente a sensação que é ouvi-las; é como ver alguém vestido de fúcsia em pleno funeral. Destoa. Agride os ouvidos. Incomoda. O ponto é se música é algo produzido por homens e não se pode separar o homem de sua obra e, por sua vez, este homem está organicamente ligado a uma comunidade, o que envolve a criação artística é tudo o que envolve o seu criador.

Cada homem cria, elabora, produz a partir de uma cultura. Não se poderia esperar que Beethoven compusesse "Bohemian Rhapsody" ou que Queen escrevesse "A paixão segundo São Mateus". A música é feita para um ouvinte e o ouvinte está inserido em uma cultura. Mas, se por outro lado, o que dizer de músicas diferentes, de períodos diferentes que parecem dizer o mesmo? Daí, vamos precisar encontrar esses elementos que se encontram. São elementos mais da ordem do conteúdo do que da forma (separação meramente didática aqui). Um homem do século 21 pode partilhar da mesma visão de Bach que compôs "A paixão segundo São Mateus" no tocante à sua fé. Então estamos falando de uma


mesma "visão de mundo". E isso é algo que todo mundo tem. Todo homem se apropria/constroi uma visão de mundo a partir da qual ele opera no mundo. 

Por isso não acredito em divisões que desconsiderem o aspecto cultural e ideológico da arte. "Esta música é boa ou não?" Depende... O que ela lhe diz? Há possibilidade de diálogo? De alguma forma, ela lhe aponta a beleza do Criador? Qual é a visão de mundo que está por trás dela? Sua relação com ela é de obediência cega ou você a confronta?

Gosto muito de Projeto Sola, os Arrais, mas, em todo um universo que me foi ofertado de belíssimas canções, de séculos e culturas diversas, por que raios eu passaria todos os meus anos ouvindo somente estas bandas que sitei?' Sigo ouvindo Dave Mattews, entendendo que são músicas produzidas por homens e, portanto, pecadores que carecem da graça de Deus (assim como os meninos do Sola). Homens que têm suas crenças, suas visões de mundo, suas idiossincrasias. Ouço nas canções harmonias complexas, células rítmicas ricas e empolgantes e também ouço suas histórias cotidianas porque música é tudo isso.

Voltando ao Rock in Rio, entendo que minha mãe, uma senhora de 84 anos, convertida há anos, que frequentou igreja neopentecosal e cultiva em si diversos tipos de "pré-conceitos" tenha muita (muita mesmo) dificuldade de entender isto, mas espero que você, leitor, possa estar em paz com o que aprendeu. Espero tê-lo(a) ajudado.

sábado, 2 de julho de 2022

Uma boa receita de rock

 




Certo dia, eu estava andando na rua quando olhei para a traseira de um ônibus. Na janela, uma propaganda de uma banda que parecia "cool", com um nome, no mínimo, curioso e de visual bem rock n' roll para os padrões da geração Z. Então, assim que alcancei a calçada, dei meus "googles" para descobrir que banda era aquela. Alguns links depois, percebi que já havia topado com eles, mas, na época, assisti um vídeo (vídeo "vídeo" mesmo) e pensei: "Ah, é igual Led Zeppelin". Sim, amigos... Estou falando de "Greta Van Fleet"!


Meu primeiro encontro com a banda não foi lá essas coisas como vocês podem supor. Os primeiros acordes até estavam me ganhando, mas quando Josh Kiszka abriu a boca, eu pensei: "Meu Deus, Robert Plant renascido!" e, na época, esqueci de fazer algo que um crítico jamais deve deixar de fazer: conhecer primeiro. Foi somente com a propaganda no ônibus que me interessei em investigar e saber como foi que meninos tão jovens resolveram fazer rock "dasantiga". E vamos nós!


Quase que inevitavelmente, a primeira coisa que me saltou aos ouvidos foi a voz de Josh.. Ouvi e ouvi e vi... Procurando, confesso, algumas "escorregadelas". Corrijam-me se eu estiver errada, mas acredito que ele seja autodidata no canto. De qualquer modo, o que ele nos apresenta é uma voz com invejável extensão vocal, de ótimo suporte respiratório e com um brilho que parece ter sido forjado nos ensaios de garagem mesmo. O garoto fez direitinho o trabalho de casa. 


E a guitarra? Banda de rock que é banda de rock tem que ter uma guitarra presente e, não raro, protagonista. E GVF tem. Ouvindo o Zeppelin e o GVF percebo que a guitarra do GVF é mais "sujinha", parece que tem um acento a mais de overdrive. É uma guitarra, por vezes, clássica. É uma assinatura da banda. 


O que dizer da composição teclado, guitarra e bateria? Nas faixas "Broken Bells" e "Flower Power" caiu como uma luva! Quase com um certo tempero de "The Doors" no teclado. Mas Sam (que assume tanto o teclado quanto o baixo) também alterna o tempero com uma boa dose de baixo regado a frases modestas, mas expressivas. Destaque para a faixa "Safari Song" que revela um lindo diálogo entre baixo, guitarra e bateria.


Para coroar, temos composições que parecem ter sido inspiradas nas raízes de blues e rhythm n' blues do rock n' roll mais "raiz". Quase como se os meninos tivessem se encapsulado em uma viagem no tempo e nos presenteassem  com uma mesa farta de belos timbres e acordes que conversam muito bem entre si. E sigo além, a música de GVF é pictórica. Ela nos descreve cenas e narrativas de um outro tempo, de outra esfera. É uma música transcendental. E aí, especificamente, neste ponto, encontro a maior semelhança com o Led Zeppelin. Mas, dizer que GVF é cópia do Zeppelin, pura e simplesmente, é limitar ambas as bandas. Se por um lado, Zeppelin tem faixas que flertam com a música indiana ("The Battle of Evermore", por exemplo), GVF tem todo um caminho pela frente ainda a dizer a que veio. Só posso dizer que até o momento, estou aproveitando.