quinta-feira, 29 de abril de 2021

Amiga poesia

 



Amiga poesia, 

Você que me é querida, sensível e voraz. Perdoe-me por hoje, só por hoje talvez. Mas, neste dia de céu nublado e quarto minguante, vou preferir prosa. Vou destilar, fruir impressões tais, caminhar por aqui e ali, desbravar matas e encontrar pequenos paraísos perdidos de mim. Pequenas doses de alegria que este momento me concede. E vou ter um dedinho de prosa aqui comigo mesma. Eu sei, pareço Narciso, mas acredite: é só impressão. Você, leitor, é bem vindo para ouvir e quiçá me ofertar com sua simpatia. 

Como ia dizendo, hoje me fiz ouvir. Com uma voz firme, gentil e precisamente clara. Perguntei, incomodei, cutuquei. E ouvi. Sim, ouvi com atenção, busquei empatia, busquei diálogo. Uma palavra que percorresse todo o caminho entre meu ser, meu coração, mente e o coração e mente do outro. E ouvi. 

De início, palavras vagas, confusas, arredias... Mas me calei sobre isso e pensei: talvez lhes sejam necessárias, talvez não as saiba tão vagas. E ouvi. Entendi que trocávamos palavras apenas. As minhas, desejosas de nomes e indicações, apontavam uma direção. Mas as que ouvia... Não cumpriam nenhum papel além de serem jogadas ao vento. Assim, cada uma voando, voando... Sem indicar nenhum paradeiro. E montei o quebra-cabeça. Bem... Do meu jeito, com as peças que me foram dadas a muito custo.

Não me fez mais feliz ou triste a imagem que as palavras conferiam... Apenas constatei. Apenas vi. E percebi a fragilidade e confusão do meu interlocutor. E com uma última frase de apoio, distante e desconsertada, eu o deixei pontuar e finalizar nossa conversa.

Não me entristeceu a fraqueza com que se indispôs a se revelar... Cobriu-se com um véu e se fez pretensamente presente em nosso diálogo. Que pena... Mas é tudo o que irei dizer sobre isso. Afinal, despir-se é uma escolha.

No mais, a alegria me brindou pela coragem. A coragem em, despudoramente, erguer minha voz. Pois, sim, tenho voz e ela se fez perfeitamente audível. E apontei claramente o caminho para o qual eu precisava seguir e, para seguir, precisava saber... E soube. E vi. Entendi. 

Então minha amiga, compreenda que, por vezes, precisamos deixar as palavras correrem livres, voláteis, etéreas. Aquelas que ficam, por algum motivo as fazem. Aquelas que se vão foram destinadas a isso. Quanto a mim, falei, disse, indaguei, cutuquei e constatei. E agora, vamos a próxima coisa.


Créditos imagem: Sushil Nash (unsplash)


quinta-feira, 22 de abril de 2021

Manhattan

Em um céu cinzento te vi
Um céu cinzento de Manhattan
De nuvens sem pele, sem forma
Informes em sua melancolia
Ternas como eu as queria

E andei sob o céu cinza
Ameaçava chover
Mas chuva acaricia
Não as poderia receber

Assim, entre o azul e a chuva
Você subsiste
Resiste
Encontra-se distante, cinza
Uma passado imaginado
Uma mancha na parede
Uma gota de água
A encher meu copo
Sede

terça-feira, 20 de abril de 2021

Fome

Não tenho fome
Eu SOU fome
Em mim irrompe a ausência de toda uma vida,
Em mim grita um buraco na alma
Não me dê relações efêmeras, frívolas
São como migalhas
Ora me iludo por elas
Ora as deixo
Ou as semeio
As rego
Nada nasce
Nada alcança
Um átomo sequer
De um desejo qualquer
De uma vida quase morta
Só um fio
Um ponto
Uma interseção me aponta a luz
Consolo
Paz
Pão
Imagem
Graça
Redenção

quinta-feira, 8 de abril de 2021

R$ 25 o quilo do camarão e a eternidade

 Hoje saí para comprar duas peças de mármore. Preciso fazer uns consertos no apê e as peças são fundamentais. Então pesquisei algumas marmorarias na internet, liguei e a primeira, de cara, me deu um ótimo orçamento. E me pus, em plena tarde carioca, na rua para comprar as tais peças.

Cheguei no lugar e parecia, de fato, como dizer… Uma espécie de oficina? Barulho alto, lugar pra estacionar e, escada acima, o atendimento. Comprei as pedras e, como fui informada de que poderia retirar no mesmo dia uma hora depois, saí pra dar uma volta. E nesse ponto eu vou tentar parar de narrar uma tarde ordinária, não muito quente e, de certa forma, enfadonha. Não, leitor, vou pular a parte que me diverti com os chás que escolhi no mercado local, que tomei um açaí (na rua, claro) e nesse meio tempo troquei uns whats com um amigo. Pra que acrescentar isso ao texto? Que graça tem? Seria interessante dizer que achei o bairro nada amistoso para pedestres ou que percorri algumas farmácias procurando um suplemento em falta para minha mãe? Nada! Carros vão e vem. Pessoas atravessam, se arriscam no sinal. Sacolinhas de plástico são distribuídas para os clientes. Obras acontecem. Tudo tão corriqueiro, tão ordinário. Tudo o mesmo. O mesmo ritmo, o mesmo tempo debaixo do sol. 

E volto a contar o que aconteceu. Voltei à marmoraria. Peguei as pedras (pesadas que estavam!) e pedi um carro de aplicativo para voltar para casa com o “pacotinho”, leve, leve… Chegou o carro e entrei. Tentei resolver um pagamento com afinco e muita concentração, porém sem sucesso. O boleto, com o código de barras todo arranhado, não poderia ser lido de jeito nenhum. Foi quando eu desisti do pagamento e ouvi o bordão: “É 25, é 25, é 25 o quilo do camarão”. E aquilo me chamou a atenção. Como?

Preciso respirar um pouco antes de me explicar… O carro do camarão me “despertou” do boleto? Sim. Minha mente mudou o foco e de repente vi camarões a minha frente, sendo preparados, cuidadosamente tratados e pensei egocentricamente: “Por que quero camarões? Eu nem mesmo sei prepará-los? Nem saberia escolhê-los…” e algo me libertou da importância do carro do camarão: se, de fato, como alguns cientistas dizem, Andrômeda se chocar com a Via Láctea, que diferença faz saber ou não fazer o camarão? Mais ainda: que diferença faz comprar o camarão ou não?

O camarão apodrece. E apodrece até rápido. A diferença entre o camarão, o carro do camarão e nós é só uma questão de tempo. Nós duramos um pouquinho mais. Como diz o salmista “a vida do homem é semelhante à relva”. Nasce, cresce e morre. Então… Qual é a graça?

A graça não está em nós, mas Naquele que tudo criou. Ele, sim, é eterno. Ele, sim, faz o carro do camarão ter seu propósito no mundo. Nele todas as coisas existem e se fazem necessárias. Daí, penso: melhor eu aprender a fazer camarão. Vai que um dia dá vontade de comer?

terça-feira, 6 de abril de 2021

Estabilidade

 Hoje estive na minha psiquiatra e ela disse algo que não ouvia há uns 3 anos: "Estou te achando estável". Caro leitor, sim, hoje você vai ler sobre bipolaridade. A palavra "estabilidade" soa como música aos meus ouvidos. Soa como aquele troféu após uma corrida difícil. Soa como uma bela vista após 4 horas de trilha com trechos bem íngremes: "estou te achando estável". No meu entender, consegui "passar de fase" no videogame. Não fora só pronunciar "estável", ela sugeriu uma redução na dosagem da medicação. Uma pequena redução. Um teste. Um "veja como se sai" e amanhã vou poder dizer melhor...

Não é só a palavra "estabilidade", mas é tudo o que ela implica: exercício físico regularmente, medicação todos os dias, treinar a mente para perceber gatilhos, ter passado por um divórcio, por desilusões, frustrações, estar todo o tempo se autoavaliando, observando humor, fazendo anotações. Estabilidade também implica se conhecer, saber seus limites, trabalhar quando é possível e saber a hora de descansar, de parar. "Estabilidade". Que doce gosto o dessa palavra!

"Estabilidade" é algo a se conquistar, mas, confesso: pode não ser eterna. Um paradoxo talvez, mas é assim. Lide com a estabilidade como uma dádiva, como uma planta a ser cultivada. Plante em terreno fértil e regue regularmente. É a cada dia, a cada pôr-do-sol. É conhecendo a sua porção, sua fragilidade. É voltar ao ponto de partida sem medo, toda a vez que for necessário. É seguir caminhando para frente também sem medo. O que eu posso lhe dizer é que é Deus quem sustenta minha estabilidade. É Ele quem faz meus neurotransmissores funcionar e assim eles seguem, me mantendo estável.

Não tenha pressa de conseguir a tão desejada estabilidade. Ela virá como uma pena, sem que você dê conta de si. Apenas viva, conheça-se, não tenha medo de suas idas e vindas. Elas fazem parte da bipolaridade. Apenas saiba que, em algum momento, você pode ouvir esta música suave e gentil nos seus ouvidos: estabilidade.

E assim eu sigo: na certeza de que Deus me sustenta e rege não só minha existência, mas também todas as coisas. E você me pergunta: "o que isso tem a ver com estabilidade?". Respondo: tudo, não se põe o sol todos os dias em todo o mundo?