domingo, 10 de outubro de 2021

Sobre "Alta Fidelidade", a música e a vida

 



Ontem assisti "Alta Fidelidade". De novo. Lembro que quando vi a primeira vez, gostei muito, mas não sabia precisar muito bem por quê. Não que eu saiba agora, mas depois de viver as experiências que vivi, posso ter uma noção do porque vale a pena passar duas horas em frente a tela para conhecer esta história.


O título do filme no original é exatamente o mesmo e ele já dá uma pista de que o filme não trata apenas de relacionamentos, mas é também um filme sobre música. A história começa com Rob sendo abandonado por sua namorada, Laura. A cena se passa na casa de Rob e ele tenta demover Laura da ideia de ir embora a qualquer custo. Sua namorada não cede e deixa Rob com uma série de questionamentos, dentre eles por que essa situação se repete em sua vida. Assim, ele lista seus "top 5" términos e vai contando a história de cada um deles e cada um possui sua própria trilha sonora. Música e vida se entrelaçam, revelando o que está mais intricado nas personagens. Assim, cada relacionamento de Rob tem uma trilha sonora. E não só na trama, mas a música tem um importante papel no filme até mesmo pelo fato dele ser dono de uma loja de discos.


Ao se perguntar por que sempre acaba abandonado, Rob segue revisitando seu passado e também lidando com seu rompimento atual. Nesse caminho, ele descobre e revela muito de si. Ele se mostra um cara egoísta, com seus medos, obsessivo e chega mesmo a distorcer a realidade se vitimizando. Acredito que por isso mesmo o filme encanta. Não se trata aqui da heroína típica de comédias românticas dos anos 90, mas, sim, um homem, mal resolvido, com suas questões e seus medos. Por extensão, pode se tratar de qualquer pessoa real.


O filme fala também da vida. Rob projetava nos seus relacionamentos sua sede existencial, seu desejo de saciedade. E, revivendo cada um deles, Rob se descobre despido de qualquer coisa que o pudesse proteger e completar. No fim, Rob descobre que, mesmo diante da impossibilidade de saciar nossa sede em um relacionamento, ele pode viver para uma pessoa apesar das suas fraquezas. E aqui a música novamente se apresenta uma forte interlocutora, sinalizando com “I believe" de Steve Wonder que ter esperança é uma necessidade humana. Gostei muito desse final. Não que seja surpreendente ou inusitado. Mas ele mostra o quanto pessoas de verdade têm o potencial de recomeçar.

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

"Relatos do Mundo", Tim Keller e o sofrimento









 Enquanto estou aqui parada sem saber como começar esse texto enquanto vou repassando os pontos que quero abordar. Bem, todo fim de semana gosto de dedicar algum tempo à sétima arte. Houve um tempo que eram clássicos, mas hoje em dia sucumbi àquela tão conhecida plataforma que vocês conhecem. 

Achar um bom filme é como fazer uma boa descoberta. Não limito aqui "bom filme" ao orçamento, mas algo que capture seu coração e te tire do lugar comum. Vou deixar de fazer suspense e entrar logo nos pormenores. Assisti ontem (ou há alguns dias, pois não sei quando essa postagem vai ser publicada) a "Relatos do Mundo". Já estava na minha lista há algum tempo, mas sabe como é... Escolher um filme ou não depende do humor do dia. O filme nem tem um enredo, assim, extraordinário. A trama conta uma história que já vimos algumas vezes em diversos filmes. Mas então por que falar dele? Primeiro, porque tem o selo "Tom Hanks" de qualidade. Segundo, porque ele aborda o sofrimento de perspectivas diferentes e porque estou lendo "Caminhando com Deus em meio à dor e ao sofrimento" do Tim Keller. O diálogo entre os dois é, simplesmente, inevitável.

Antes de discutir os pontos que me saltaram à vista, é preciso entender o contexto do filme. E não vou me desculpar por escrever sem amarras. Ou seja, se houver spoiler, spoiler haverá. No velho oeste americano, quando um veterano de guerra encontra uma órfã que convivia com os índios Kiowa, ele decide levá-la aos seus parentes ainda vivos, enfrentando, junto com a garotinha, diversos perigos na jornada. Captain Kidd (Tom Hanks) ganhava a vida lendo as notícias de outras cidades nas comunidades em que passava e, viajando com Johanna (Helena Zengel), os dois acabam criando um vínculo de afeição.

A historia dos dois é permeada por sofrimento, mas o primeiro a ser evidenciado é o de Johanna. A pequena órfã viu seus pais e sua irmãzinha morrerem de forma hedionda pouco antes de ser encontrada por Kidd. A forma como ela lida com o sofrimento é bem diferente da do capitão. Enquanto ele visualiza uma linha reta, um movimento que o leva a não revisitar o lugar de sofrimento, ela vê um círculo. Em determinado ponto da viagem em que os dois conseguem, apesar da barreira da linguagem, se entender, ela deixa explícito que é preciso revisitar o sofrimento para se seguir em frente. Enquanto Kidd não vê sentido no sofrimento, ela o enxerga como um ponto de partida. 

Ainda, em outros pontos do filme, a visão de Kidd sobre a dor vivida o guia em relação à Johanna. Para ele, o sofrimento deve ser evitado a qualquer custo. Por isso ele diz a Johanna para não entrar na casa onde seus pais foram mortos. Para Kidd, o importante é manter a pequena órfã longe daquilo tudo. Mas Johanna disse: "Johanna go". Sim, ela foi. Ela entrou na casa, viu as manchas de sangue, viu tudo desarrumado, pegou sua bonequinha e saiu dali. Saiu pronta pra seguir viagem. Kidd ficou de longe olhando. A ele cabia levá-la a salvo para longe do lugar de dor.

Além de Johanna, Capitão Kidd tinha ele mesmo suas próprias dores. Serviu em duas guerras e deixou a esposa a sua espera em uma cidade. As ações de Kidd, em alguns momentos, pareciam uma vã tentativa de redimir seu passado de sangue. Até sua disposição em ajudar Johanna. Quanto à esposa, ele sabia que, em algum momento, teria de lidar com ela e com o seu passado antes da guerra. Em algum momento, teria de voltar. E é quando sua viagem com Johanna chega ao fim que ele retorna à sua cidade e descobre que sua esposa faleceu e não está mais a sua espera. Em seu diálogo com um velho amigo, Kidd deixa claro que seu sofrimento era uma maldição. Ele estava sendo punido pelos crimes de guerra através da morte da esposa. Ao que seu amigo retruca: "é apenas uma doença".

Em "Caminhando com Deus em meio à dor e ao sofrimento", Tim Keller começar por abordar o sofrimento sob diferentes perspectivas. Kidd seria um moralista, pois seu pecado é a causa do mal que sobreveio à sua esposa. E Johanna entenderia o sofrimento como parte da vida. A questão é que a forma como entendemos o sofrimento pode impactar diretamente nossas ações. Podemos, simplesmente, correr dele desesperadamente ou abraçá-lo como Cristo ensinou e não, isso nada tem a ver com masoquismo, mas com dar ao sofrimento o lugar que lhe cabe: os pés da cruz.

A fé cristã, como aponta Keller, nos ensina a ver que o sofrimento tem propósito. Ela transcende o moralismo e o secularismo de nossos dias. Nem o sofrimento é maldição (como para Kidd), nem uma fatalidade (como para Johanna). 

Ainda não terminei o livro de Keller e por isso seja precipitado esmiuçá-lo. Mas o diálogo com o filme me pareceu tão evidente que merecia alguma reflexão. O ponto é como nossa visão sobre o sofrimento norteia nossas atitudes e nossa relação com o outro. Isso impacta diretamente nossas ações. Ou nos torna capazes de seguir adiante, processando e ressignificando a dor ou nos prende a ela, de alguma forma. O melhor é que não tenhamos medo do sofrimento, mas que vivamos a alegria em meio a dor.

domingo, 16 de maio de 2021

A obediência é anterior à "felicidade"

 

(Noah Siliman/unsplash)



Vou começar este texto já concluindo: sua obediência a Deus é anterior à sua "felicidade". Respire e leia novamente: "sua obediência a Deus é anterior à sua 'felicidade'". Há tanto o que dizer sobre isso que as ideias estão, neste exato momento, brigando para serem a primeira. Vou começar com a "felicidade", sim, entre aspas porque esta não é verdadeira (porque nem sempre isto está óbvio).

Todos nós temos uma ideia de felicidade que é, na maioria das vezes (creio), dinâmica e se amolda às nossas vivências. Você pode, por exemplo, quando pequeno ter tido o sonho de ser professor e pensar que para ser feliz, teria de se tornar um. Nesse sentido, felicidade é algo que se projeta para o futuro. Não é algo pertencente ao presente. Por outro lado, você também pode ter pensado que felicidade é vivenciar os momentos em família ou com amigos. E então, precisamente, nesses momentos, você é feliz. Nos dois exemplos, o conceito de felicidade é construído a partir de algo em que acreditamos ser "felicidade". Se considerarmos, felicidade como construção, precisamos ser honestos e nos perguntar: a partir do que se dá a construção do que conceituamos "felicidade". E esta é, por agora, a pergunta mais necessária a se fazer. 

Podemos entender "felicidade" algo como: "para ser feliz, preciso de X ou Y" (e então levar em conta tanto a projeção para o futuro quanto as experiências vividas no presente), mas há ainda um conceito de felicidade que só pode existir em oposição ao de sofrimento. Se estou em dor, é possível que compreenda "felicidade" como sendo a ausência dessa dor: "para estar feliz, preciso me livrar de X ou Y". O ponto até então é que, seja qual for a base para esses conceitos de "felicidade", eles não abarcam a perspectiva paulina, não harmonizam com Filipenses e outros escritos. Vou então, com muito temor, refletir sobre esta perspectiva de felicidade. 

O que Paulo nos ensina? Primeiro, vou falar sobre felicidade X sofrimento. Paulo sofreu. Essa é uma constatação. Mas não podemos dizer que era infeliz. Um homem infeliz não diz "alegrai-vos". Um homem infeliz não ouve "a Minha graça te basta" e responde "De boa vontade, pois, me gloriarei nas minhas fraquezas, para que em mim habite o poder de Cristo." (2 Co. 12:7). Um homem infeliz é uma pessoa insatisfeita. Nada lhe basta, nada lhe preenche. Mas a Paulo, bastava a graça do Altíssimo: "a Minha graça te basta". Então ele era um homem satisfeito. Uma pessoa satisfeita não precisa de X ou Y para ser feliz porque ela JÁ TEM  o que precisa. O discurso de Paulo é consonante ao do salmista, no salmo 23 (o Senhor é meu pastor, de nada terei falta). 

Ainda sobre o sofrimento, Paulo tinha um "espinho na carne" que lhe causava dor e buscou a Deus, pedindo a Ele que o livrasse dessa dor. Pediu três vezes, ou seja, ele insistiu. Não era simplesmente algo que não o incomodasse. E Deus não retirou dele esta dor. O sofrimento de Paulo não se opunha à sua felicidade. Os dois coexistiam. Paulo era feliz APESAR do seu sofrimento. E agora cabe um parêntesis.

Somos treinados a evitar o sofrimento a qualquer custo: "Desce daí, se não vai cair/Tome este remédio pra dor de cabeça/ Passe esta pomada para hematomas/Evite tal pessoa, pois ela lhe causa dor". Não estou aqui fazendo uma apologia da dor ou dizendo que não devemos tratá-la. Pelo contrário! Imagine que sua dor de cabeça seja causada por problemas de visão e você só trata com analgésicos. Você vai sufocar a dor, mas não vai tratá-la. O que Deus faz com Paulo é TRATAR a dor ao invés de extirpá-la porque isto era necessário e a dor tinha um propósito ("para que em mim habite o poder de Cristo").

Paulo escolheu obedecer. Abraão também. Lembremos de seu exemplo: levou Isaque e a lenha para o holocausto e seguiu para o lugar de sacrifício. Duvido muito que Abraão estivesse feliz, caminhando para o o holocausto, tendo a seu próprio filho como "cordeiro". Mas ele escolheu obedecer. E, somente por obedecer, Abraão pode ouvir: "esteja certo de que o abençoarei e farei seus descendentes tão numerosos como as estrelas do céu e como a areia das praias do mar" (Gn. 22:17).

O ponto de convergência entre Paulo e Abraão se dá no salmo 37, principalmente nos versos: 

"Confia no Senhor e faze o bem; habita na terra e alimenta-te da verdade.
Agrada-te do Senhor, e Ele satisfará os desejos do teu coração.
Entrega o teu caminho ao Senhor, confia nele, e o mais ele fará." 
(v. 3-5, grifo meu)

É, precisamente, no "agrada-te do Senhor" que reside o conceito de felicidade cristã, mas tal conceito não é possível sem confiança: "confia no Senhor". É preciso confiar e conhecer a bondade de Deus e sua soberania para poder entregar a Ele nosso caminho. Logo, temos aqui uma felicidade que não se pauta sobre circunstâncias terrenas, experiências presentes, futuras ou, simplesmente, ausência de dor. O que temos é uma obediência anterior à felicidade, temos o "agrada-te" primeiro e, somente nesse deleite e alegria que, em si, já é o estado de felicidade, a satisfação dos desejos de nossos corações agora consonantes à vontade do Pai. Portanto, só é possível sermos satisfeitos quando a obediência à ordem "agrada-te" é anterior à satisfação dos desejos do nosso coração, pois só é possível a satisfação dos desejos que harmonizam com a vontade de Deus. Então se você se deparar com alguma situação ou escolha na qual se oponham obediência a Deus e felicidade, faça a escolha óbvia: obediência.








quinta-feira, 29 de abril de 2021

Amiga poesia

 



Amiga poesia, 

Você que me é querida, sensível e voraz. Perdoe-me por hoje, só por hoje talvez. Mas, neste dia de céu nublado e quarto minguante, vou preferir prosa. Vou destilar, fruir impressões tais, caminhar por aqui e ali, desbravar matas e encontrar pequenos paraísos perdidos de mim. Pequenas doses de alegria que este momento me concede. E vou ter um dedinho de prosa aqui comigo mesma. Eu sei, pareço Narciso, mas acredite: é só impressão. Você, leitor, é bem vindo para ouvir e quiçá me ofertar com sua simpatia. 

Como ia dizendo, hoje me fiz ouvir. Com uma voz firme, gentil e precisamente clara. Perguntei, incomodei, cutuquei. E ouvi. Sim, ouvi com atenção, busquei empatia, busquei diálogo. Uma palavra que percorresse todo o caminho entre meu ser, meu coração, mente e o coração e mente do outro. E ouvi. 

De início, palavras vagas, confusas, arredias... Mas me calei sobre isso e pensei: talvez lhes sejam necessárias, talvez não as saiba tão vagas. E ouvi. Entendi que trocávamos palavras apenas. As minhas, desejosas de nomes e indicações, apontavam uma direção. Mas as que ouvia... Não cumpriam nenhum papel além de serem jogadas ao vento. Assim, cada uma voando, voando... Sem indicar nenhum paradeiro. E montei o quebra-cabeça. Bem... Do meu jeito, com as peças que me foram dadas a muito custo.

Não me fez mais feliz ou triste a imagem que as palavras conferiam... Apenas constatei. Apenas vi. E percebi a fragilidade e confusão do meu interlocutor. E com uma última frase de apoio, distante e desconsertada, eu o deixei pontuar e finalizar nossa conversa.

Não me entristeceu a fraqueza com que se indispôs a se revelar... Cobriu-se com um véu e se fez pretensamente presente em nosso diálogo. Que pena... Mas é tudo o que irei dizer sobre isso. Afinal, despir-se é uma escolha.

No mais, a alegria me brindou pela coragem. A coragem em, despudoramente, erguer minha voz. Pois, sim, tenho voz e ela se fez perfeitamente audível. E apontei claramente o caminho para o qual eu precisava seguir e, para seguir, precisava saber... E soube. E vi. Entendi. 

Então minha amiga, compreenda que, por vezes, precisamos deixar as palavras correrem livres, voláteis, etéreas. Aquelas que ficam, por algum motivo as fazem. Aquelas que se vão foram destinadas a isso. Quanto a mim, falei, disse, indaguei, cutuquei e constatei. E agora, vamos a próxima coisa.


Créditos imagem: Sushil Nash (unsplash)


quinta-feira, 22 de abril de 2021

Manhattan

Em um céu cinzento te vi
Um céu cinzento de Manhattan
De nuvens sem pele, sem forma
Informes em sua melancolia
Ternas como eu as queria

E andei sob o céu cinza
Ameaçava chover
Mas chuva acaricia
Não as poderia receber

Assim, entre o azul e a chuva
Você subsiste
Resiste
Encontra-se distante, cinza
Uma passado imaginado
Uma mancha na parede
Uma gota de água
A encher meu copo
Sede

terça-feira, 20 de abril de 2021

Fome

Não tenho fome
Eu SOU fome
Em mim irrompe a ausência de toda uma vida,
Em mim grita um buraco na alma
Não me dê relações efêmeras, frívolas
São como migalhas
Ora me iludo por elas
Ora as deixo
Ou as semeio
As rego
Nada nasce
Nada alcança
Um átomo sequer
De um desejo qualquer
De uma vida quase morta
Só um fio
Um ponto
Uma interseção me aponta a luz
Consolo
Paz
Pão
Imagem
Graça
Redenção

quinta-feira, 8 de abril de 2021

R$ 25 o quilo do camarão e a eternidade

 Hoje saí para comprar duas peças de mármore. Preciso fazer uns consertos no apê e as peças são fundamentais. Então pesquisei algumas marmorarias na internet, liguei e a primeira, de cara, me deu um ótimo orçamento. E me pus, em plena tarde carioca, na rua para comprar as tais peças.

Cheguei no lugar e parecia, de fato, como dizer… Uma espécie de oficina? Barulho alto, lugar pra estacionar e, escada acima, o atendimento. Comprei as pedras e, como fui informada de que poderia retirar no mesmo dia uma hora depois, saí pra dar uma volta. E nesse ponto eu vou tentar parar de narrar uma tarde ordinária, não muito quente e, de certa forma, enfadonha. Não, leitor, vou pular a parte que me diverti com os chás que escolhi no mercado local, que tomei um açaí (na rua, claro) e nesse meio tempo troquei uns whats com um amigo. Pra que acrescentar isso ao texto? Que graça tem? Seria interessante dizer que achei o bairro nada amistoso para pedestres ou que percorri algumas farmácias procurando um suplemento em falta para minha mãe? Nada! Carros vão e vem. Pessoas atravessam, se arriscam no sinal. Sacolinhas de plástico são distribuídas para os clientes. Obras acontecem. Tudo tão corriqueiro, tão ordinário. Tudo o mesmo. O mesmo ritmo, o mesmo tempo debaixo do sol. 

E volto a contar o que aconteceu. Voltei à marmoraria. Peguei as pedras (pesadas que estavam!) e pedi um carro de aplicativo para voltar para casa com o “pacotinho”, leve, leve… Chegou o carro e entrei. Tentei resolver um pagamento com afinco e muita concentração, porém sem sucesso. O boleto, com o código de barras todo arranhado, não poderia ser lido de jeito nenhum. Foi quando eu desisti do pagamento e ouvi o bordão: “É 25, é 25, é 25 o quilo do camarão”. E aquilo me chamou a atenção. Como?

Preciso respirar um pouco antes de me explicar… O carro do camarão me “despertou” do boleto? Sim. Minha mente mudou o foco e de repente vi camarões a minha frente, sendo preparados, cuidadosamente tratados e pensei egocentricamente: “Por que quero camarões? Eu nem mesmo sei prepará-los? Nem saberia escolhê-los…” e algo me libertou da importância do carro do camarão: se, de fato, como alguns cientistas dizem, Andrômeda se chocar com a Via Láctea, que diferença faz saber ou não fazer o camarão? Mais ainda: que diferença faz comprar o camarão ou não?

O camarão apodrece. E apodrece até rápido. A diferença entre o camarão, o carro do camarão e nós é só uma questão de tempo. Nós duramos um pouquinho mais. Como diz o salmista “a vida do homem é semelhante à relva”. Nasce, cresce e morre. Então… Qual é a graça?

A graça não está em nós, mas Naquele que tudo criou. Ele, sim, é eterno. Ele, sim, faz o carro do camarão ter seu propósito no mundo. Nele todas as coisas existem e se fazem necessárias. Daí, penso: melhor eu aprender a fazer camarão. Vai que um dia dá vontade de comer?

terça-feira, 6 de abril de 2021

Estabilidade

 Hoje estive na minha psiquiatra e ela disse algo que não ouvia há uns 3 anos: "Estou te achando estável". Caro leitor, sim, hoje você vai ler sobre bipolaridade. A palavra "estabilidade" soa como música aos meus ouvidos. Soa como aquele troféu após uma corrida difícil. Soa como uma bela vista após 4 horas de trilha com trechos bem íngremes: "estou te achando estável". No meu entender, consegui "passar de fase" no videogame. Não fora só pronunciar "estável", ela sugeriu uma redução na dosagem da medicação. Uma pequena redução. Um teste. Um "veja como se sai" e amanhã vou poder dizer melhor...

Não é só a palavra "estabilidade", mas é tudo o que ela implica: exercício físico regularmente, medicação todos os dias, treinar a mente para perceber gatilhos, ter passado por um divórcio, por desilusões, frustrações, estar todo o tempo se autoavaliando, observando humor, fazendo anotações. Estabilidade também implica se conhecer, saber seus limites, trabalhar quando é possível e saber a hora de descansar, de parar. "Estabilidade". Que doce gosto o dessa palavra!

"Estabilidade" é algo a se conquistar, mas, confesso: pode não ser eterna. Um paradoxo talvez, mas é assim. Lide com a estabilidade como uma dádiva, como uma planta a ser cultivada. Plante em terreno fértil e regue regularmente. É a cada dia, a cada pôr-do-sol. É conhecendo a sua porção, sua fragilidade. É voltar ao ponto de partida sem medo, toda a vez que for necessário. É seguir caminhando para frente também sem medo. O que eu posso lhe dizer é que é Deus quem sustenta minha estabilidade. É Ele quem faz meus neurotransmissores funcionar e assim eles seguem, me mantendo estável.

Não tenha pressa de conseguir a tão desejada estabilidade. Ela virá como uma pena, sem que você dê conta de si. Apenas viva, conheça-se, não tenha medo de suas idas e vindas. Elas fazem parte da bipolaridade. Apenas saiba que, em algum momento, você pode ouvir esta música suave e gentil nos seus ouvidos: estabilidade.

E assim eu sigo: na certeza de que Deus me sustenta e rege não só minha existência, mas também todas as coisas. E você me pergunta: "o que isso tem a ver com estabilidade?". Respondo: tudo, não se põe o sol todos os dias em todo o mundo?

terça-feira, 30 de março de 2021

Retorno

 Lua cheia, março de 2021


"Eu olhei a tristeza nos olhos e sorri
Mesmo quebrantado pela vida que escolhi
Da janela eu vi
Cada estação fugir
Como as árvores eu permaneço no mesmo lugar
No outono, no inverno, eu espero primavera chegar
Da estrada eu quis
Retornar pra onde parti
Da distância avistei a alegria e a esperança
Das migalhas que desperdiçamos, faremos jantar
Eu voltaria atrás
Pra tentar me avisar
Que o caminho será escuro
Mas que Cristo é a luz do mundo
Deixe Ele te falar quem você é
Que a Palavra te desfaça
Que te afogue em Sua graça
Só a cruz esconderá quem você não é"
(Os Arrais, 17 de janeiro)

Hoje sou essa canção. A canção do "eu voltaria atrás pra tentar me avisar". Eu diria exatamente o mesmo: o caminho será escuro, nada será fácil, mas Cristo estará ao seu lado. E penso nas possibilidades. Nas escolhas que poderia ter feito que me levassem a outro destino, a outro lugar. Não foi. Não será. Então entrego nas mãos de quem pode, de fato, mudar o curso do meu caminhar.
"Que o caminho será escuro, mas que Cristo é a luz do mundo". Tenhamos essa confiança. Não somos um barco à deriva, não estamos à mercê do caos. Não. Tudo caminha para Sua glória. Tudo caminha para Seu propósito e o Seu propósito é bom. Tenhamos essa confiança. Porque Ele é bom. Porque não tem faltado com Sua palavra. Porque Ele cumpre o que promete. Porque tem cuidado de nós.
Se sucumbirmos às notícias, aos revezes do caminhar nesta terra, lembremos, como peregrinos, então não nos sujeitamos a Ele e Ele é. Ele é a única coisa que importa. Ele é o início e o fim de todas as coisas. É Nele que está nossa esperança, nosso olhar. 
Ao me deparar neste ponto, eu quis retornar. Quem me dera retornar. Não creio que faria tudo diferente. Eu o teria amado mais cedo. Teria adorado mais cedo. Teria lhe rendido minha vida mais cedo. Mas só posso seguir na minha fragilidade e fraqueza, sabendo que Ele é a minha força. E aos olhos de Deus, sou justa por meio Daquele que se entregou por mim. Ele sabe o propósito dos fios escuros na tapeçaria da minha vida.
E concluo este breve desassossego dizendo que Ele é o ponto de partida. Sempre. Para nossas inquietações, nossas desilusões, nossos medos e desapontamentos, só podemos partir Dele. Só é possível ter esperanças Nele.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Um cobertor maior

 Lua Nova, janeiro de 2021.

 

Hoje quero escrever sem amarras. Quero escrever livre como um riacho descendo corredeira abaixo. Sempre me proponho a isso, nem sempre consigo, eu sei, mas hoje é necessidade, hoje é querência.

Nesta manhã, acordei muito mal. Estou desde ontem mal. Um sintoma emocional e físico que conheço muito bem: angústia. Se você é bipolar, deve conhecer bem esta velha companheira. Não tenho receita para evitá-la, mas se tivesse, pergunto-me se deveria fazê-lo (como aquela história de “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”). O que eu posso dizer é que não tem remédio pra isso.

Se por um lado, não há remédio... Você pode se perguntar por que estou escrevendo esse texto. De fato, não descobri a cura, mas este não é de todo um caso perdido e aqui me proponho a pensar no que faço quando estou neste estado.

Primeiro, não tente negar. É pior. Dói ainda mais. Reconheça e identifique o sintoma e apenas o saiba presente e parou por aí. Segundo, não “mergulhe” nele. Não o alimente, nem dê a ele mais do que o que ele precisa. Terceiro, procure se distrair. Se há algo que capture sua atenção, faça-o. Neste exato momento, eu estou escrevendo. Estou me concentrando em algo que cativa meu coração. Quarto, procure as pessoas que te assistem: médico, psicólogo, terapeuta... Tente manter um registro do seu humor e passa informações detalhadas sobre você para seu médico. Quinto, procure seus amigos. Não se isole. Sim, você terá seu momento de solitude (e não solidão), que é muito importante, mas evite dar oportunidade para a angústia te engolir.

Por fim, nessas horas, lembro sempre de quem eu sou e em quem eu acredito e não há como fugir deste pensamento. Há um dito popular que diz “Deus dá o frio conforme o cobertor”. Não sou muito fã de ditos populares, mas não é por isso que considero este tão falacioso. Lembro de Paulo, Jó e Davi, que passaram por tantas provações. Não. O cobertor deles era pequeno, bem pequeno. Paulo pediu a Deus a cura e Ele lhe respondeu: “a minha graça te basta”. O que isso me diz? Que nossos cobertores são pequenos e finos até, mas que, ao recorrer a um pai bondoso e poderoso, Ele nos dá um cobertor potente e nos mantém aquecidos até que a noite passe. Essa é a minha certeza. Esse é o motivo pelo qual escrevo esta manhã e sei que, embora eu não tenha forças pra lutar contra a angústia, Deus tem. Ele é a minha armadura.

Espero ter despertado sua consciência para uma luta mais justa e menos desigual contra o transtorno e a angústia e que você saiba que, se por um lado, não há cura para todo mal, há remédio para cada tipo de dor.

 

Até a próxima lua.