sexta-feira, 20 de agosto de 2021

"Relatos do Mundo", Tim Keller e o sofrimento









 Enquanto estou aqui parada sem saber como começar esse texto enquanto vou repassando os pontos que quero abordar. Bem, todo fim de semana gosto de dedicar algum tempo à sétima arte. Houve um tempo que eram clássicos, mas hoje em dia sucumbi àquela tão conhecida plataforma que vocês conhecem. 

Achar um bom filme é como fazer uma boa descoberta. Não limito aqui "bom filme" ao orçamento, mas algo que capture seu coração e te tire do lugar comum. Vou deixar de fazer suspense e entrar logo nos pormenores. Assisti ontem (ou há alguns dias, pois não sei quando essa postagem vai ser publicada) a "Relatos do Mundo". Já estava na minha lista há algum tempo, mas sabe como é... Escolher um filme ou não depende do humor do dia. O filme nem tem um enredo, assim, extraordinário. A trama conta uma história que já vimos algumas vezes em diversos filmes. Mas então por que falar dele? Primeiro, porque tem o selo "Tom Hanks" de qualidade. Segundo, porque ele aborda o sofrimento de perspectivas diferentes e porque estou lendo "Caminhando com Deus em meio à dor e ao sofrimento" do Tim Keller. O diálogo entre os dois é, simplesmente, inevitável.

Antes de discutir os pontos que me saltaram à vista, é preciso entender o contexto do filme. E não vou me desculpar por escrever sem amarras. Ou seja, se houver spoiler, spoiler haverá. No velho oeste americano, quando um veterano de guerra encontra uma órfã que convivia com os índios Kiowa, ele decide levá-la aos seus parentes ainda vivos, enfrentando, junto com a garotinha, diversos perigos na jornada. Captain Kidd (Tom Hanks) ganhava a vida lendo as notícias de outras cidades nas comunidades em que passava e, viajando com Johanna (Helena Zengel), os dois acabam criando um vínculo de afeição.

A historia dos dois é permeada por sofrimento, mas o primeiro a ser evidenciado é o de Johanna. A pequena órfã viu seus pais e sua irmãzinha morrerem de forma hedionda pouco antes de ser encontrada por Kidd. A forma como ela lida com o sofrimento é bem diferente da do capitão. Enquanto ele visualiza uma linha reta, um movimento que o leva a não revisitar o lugar de sofrimento, ela vê um círculo. Em determinado ponto da viagem em que os dois conseguem, apesar da barreira da linguagem, se entender, ela deixa explícito que é preciso revisitar o sofrimento para se seguir em frente. Enquanto Kidd não vê sentido no sofrimento, ela o enxerga como um ponto de partida. 

Ainda, em outros pontos do filme, a visão de Kidd sobre a dor vivida o guia em relação à Johanna. Para ele, o sofrimento deve ser evitado a qualquer custo. Por isso ele diz a Johanna para não entrar na casa onde seus pais foram mortos. Para Kidd, o importante é manter a pequena órfã longe daquilo tudo. Mas Johanna disse: "Johanna go". Sim, ela foi. Ela entrou na casa, viu as manchas de sangue, viu tudo desarrumado, pegou sua bonequinha e saiu dali. Saiu pronta pra seguir viagem. Kidd ficou de longe olhando. A ele cabia levá-la a salvo para longe do lugar de dor.

Além de Johanna, Capitão Kidd tinha ele mesmo suas próprias dores. Serviu em duas guerras e deixou a esposa a sua espera em uma cidade. As ações de Kidd, em alguns momentos, pareciam uma vã tentativa de redimir seu passado de sangue. Até sua disposição em ajudar Johanna. Quanto à esposa, ele sabia que, em algum momento, teria de lidar com ela e com o seu passado antes da guerra. Em algum momento, teria de voltar. E é quando sua viagem com Johanna chega ao fim que ele retorna à sua cidade e descobre que sua esposa faleceu e não está mais a sua espera. Em seu diálogo com um velho amigo, Kidd deixa claro que seu sofrimento era uma maldição. Ele estava sendo punido pelos crimes de guerra através da morte da esposa. Ao que seu amigo retruca: "é apenas uma doença".

Em "Caminhando com Deus em meio à dor e ao sofrimento", Tim Keller começar por abordar o sofrimento sob diferentes perspectivas. Kidd seria um moralista, pois seu pecado é a causa do mal que sobreveio à sua esposa. E Johanna entenderia o sofrimento como parte da vida. A questão é que a forma como entendemos o sofrimento pode impactar diretamente nossas ações. Podemos, simplesmente, correr dele desesperadamente ou abraçá-lo como Cristo ensinou e não, isso nada tem a ver com masoquismo, mas com dar ao sofrimento o lugar que lhe cabe: os pés da cruz.

A fé cristã, como aponta Keller, nos ensina a ver que o sofrimento tem propósito. Ela transcende o moralismo e o secularismo de nossos dias. Nem o sofrimento é maldição (como para Kidd), nem uma fatalidade (como para Johanna). 

Ainda não terminei o livro de Keller e por isso seja precipitado esmiuçá-lo. Mas o diálogo com o filme me pareceu tão evidente que merecia alguma reflexão. O ponto é como nossa visão sobre o sofrimento norteia nossas atitudes e nossa relação com o outro. Isso impacta diretamente nossas ações. Ou nos torna capazes de seguir adiante, processando e ressignificando a dor ou nos prende a ela, de alguma forma. O melhor é que não tenhamos medo do sofrimento, mas que vivamos a alegria em meio a dor.