domingo, 16 de maio de 2021

A obediência é anterior à "felicidade"

 

(Noah Siliman/unsplash)



Vou começar este texto já concluindo: sua obediência a Deus é anterior à sua "felicidade". Respire e leia novamente: "sua obediência a Deus é anterior à sua 'felicidade'". Há tanto o que dizer sobre isso que as ideias estão, neste exato momento, brigando para serem a primeira. Vou começar com a "felicidade", sim, entre aspas porque esta não é verdadeira (porque nem sempre isto está óbvio).

Todos nós temos uma ideia de felicidade que é, na maioria das vezes (creio), dinâmica e se amolda às nossas vivências. Você pode, por exemplo, quando pequeno ter tido o sonho de ser professor e pensar que para ser feliz, teria de se tornar um. Nesse sentido, felicidade é algo que se projeta para o futuro. Não é algo pertencente ao presente. Por outro lado, você também pode ter pensado que felicidade é vivenciar os momentos em família ou com amigos. E então, precisamente, nesses momentos, você é feliz. Nos dois exemplos, o conceito de felicidade é construído a partir de algo em que acreditamos ser "felicidade". Se considerarmos, felicidade como construção, precisamos ser honestos e nos perguntar: a partir do que se dá a construção do que conceituamos "felicidade". E esta é, por agora, a pergunta mais necessária a se fazer. 

Podemos entender "felicidade" algo como: "para ser feliz, preciso de X ou Y" (e então levar em conta tanto a projeção para o futuro quanto as experiências vividas no presente), mas há ainda um conceito de felicidade que só pode existir em oposição ao de sofrimento. Se estou em dor, é possível que compreenda "felicidade" como sendo a ausência dessa dor: "para estar feliz, preciso me livrar de X ou Y". O ponto até então é que, seja qual for a base para esses conceitos de "felicidade", eles não abarcam a perspectiva paulina, não harmonizam com Filipenses e outros escritos. Vou então, com muito temor, refletir sobre esta perspectiva de felicidade. 

O que Paulo nos ensina? Primeiro, vou falar sobre felicidade X sofrimento. Paulo sofreu. Essa é uma constatação. Mas não podemos dizer que era infeliz. Um homem infeliz não diz "alegrai-vos". Um homem infeliz não ouve "a Minha graça te basta" e responde "De boa vontade, pois, me gloriarei nas minhas fraquezas, para que em mim habite o poder de Cristo." (2 Co. 12:7). Um homem infeliz é uma pessoa insatisfeita. Nada lhe basta, nada lhe preenche. Mas a Paulo, bastava a graça do Altíssimo: "a Minha graça te basta". Então ele era um homem satisfeito. Uma pessoa satisfeita não precisa de X ou Y para ser feliz porque ela JÁ TEM  o que precisa. O discurso de Paulo é consonante ao do salmista, no salmo 23 (o Senhor é meu pastor, de nada terei falta). 

Ainda sobre o sofrimento, Paulo tinha um "espinho na carne" que lhe causava dor e buscou a Deus, pedindo a Ele que o livrasse dessa dor. Pediu três vezes, ou seja, ele insistiu. Não era simplesmente algo que não o incomodasse. E Deus não retirou dele esta dor. O sofrimento de Paulo não se opunha à sua felicidade. Os dois coexistiam. Paulo era feliz APESAR do seu sofrimento. E agora cabe um parêntesis.

Somos treinados a evitar o sofrimento a qualquer custo: "Desce daí, se não vai cair/Tome este remédio pra dor de cabeça/ Passe esta pomada para hematomas/Evite tal pessoa, pois ela lhe causa dor". Não estou aqui fazendo uma apologia da dor ou dizendo que não devemos tratá-la. Pelo contrário! Imagine que sua dor de cabeça seja causada por problemas de visão e você só trata com analgésicos. Você vai sufocar a dor, mas não vai tratá-la. O que Deus faz com Paulo é TRATAR a dor ao invés de extirpá-la porque isto era necessário e a dor tinha um propósito ("para que em mim habite o poder de Cristo").

Paulo escolheu obedecer. Abraão também. Lembremos de seu exemplo: levou Isaque e a lenha para o holocausto e seguiu para o lugar de sacrifício. Duvido muito que Abraão estivesse feliz, caminhando para o o holocausto, tendo a seu próprio filho como "cordeiro". Mas ele escolheu obedecer. E, somente por obedecer, Abraão pode ouvir: "esteja certo de que o abençoarei e farei seus descendentes tão numerosos como as estrelas do céu e como a areia das praias do mar" (Gn. 22:17).

O ponto de convergência entre Paulo e Abraão se dá no salmo 37, principalmente nos versos: 

"Confia no Senhor e faze o bem; habita na terra e alimenta-te da verdade.
Agrada-te do Senhor, e Ele satisfará os desejos do teu coração.
Entrega o teu caminho ao Senhor, confia nele, e o mais ele fará." 
(v. 3-5, grifo meu)

É, precisamente, no "agrada-te do Senhor" que reside o conceito de felicidade cristã, mas tal conceito não é possível sem confiança: "confia no Senhor". É preciso confiar e conhecer a bondade de Deus e sua soberania para poder entregar a Ele nosso caminho. Logo, temos aqui uma felicidade que não se pauta sobre circunstâncias terrenas, experiências presentes, futuras ou, simplesmente, ausência de dor. O que temos é uma obediência anterior à felicidade, temos o "agrada-te" primeiro e, somente nesse deleite e alegria que, em si, já é o estado de felicidade, a satisfação dos desejos de nossos corações agora consonantes à vontade do Pai. Portanto, só é possível sermos satisfeitos quando a obediência à ordem "agrada-te" é anterior à satisfação dos desejos do nosso coração, pois só é possível a satisfação dos desejos que harmonizam com a vontade de Deus. Então se você se deparar com alguma situação ou escolha na qual se oponham obediência a Deus e felicidade, faça a escolha óbvia: obediência.