terça-feira, 22 de setembro de 2015

Sobre ritmos, louvor e música



 Uma obra de arte pode ser, em si, uma doxologia” (Francis Shaeffer)



Há tempos que a reflexão sobre música, psiquê, louvor (eu ia escrever “doxologia”, mas vou tentar tornar esse texto mais “palatável” rs) e cultura me acompanha, mesmo antes de estudar Etnomusicologia no mestrado. A razão disso é até meio óbvia: o gosto pela música e pela arte. Como cristã, sempre me atraíram tais discussões.

Daí, um dia, de vídeo em vídeo no youtube, descobri uma pérola. Dois jovens que se atreveram a abordar um tema talvez ainda polêmico (acho que já foi mais rs). Todos os ritmos louvam a Deus? A resposta foi bem clara: não. Quem louva a Deus são as pessoas, rs. Faz sentido. De fato, a pergunta poderia ser “todos os ritmos nos levam a contemplar a Cristo?” Ao invés de responder, o vídeo propõe princípios. Sob esses princípios é que pretendo tecer meus comentários.

Antes de adentrar o assunto, gostaria de frisar aqui uma distinção que foi levemente sugerida no vídeo: arte da igreja e arte para igreja (conforme coloca Shai Linne, um rapper cristão americano). No vídeo, os rapazes tratam, basicamente, de arte para igreja, mas penso que, por vezes, as duas podem se entretecer... Enfim, vou falando na medida em que couberem os pensamentos.

Sobre a didaticidade do canto... Penso que esta pode ser uma das questões mais problemáticas do canto congregacional. Eu diria que não só pelas letras das canções, mas nossa hinologia atual (parece até um contrassenso usar essas duas palavras rs) é muito pouco pensada para igreja... Quando é pensada para a igreja, nós temos composições apelativas, que partem muito mais dos anseios do homem do que da contemplação de Deus. Falta muito preparo nos músicos. Conhecimento da palavra, boa teologia e também da música. Esta, já uma questão complexa, posto que a grande maioria são amadores. Ainda assim, não vejo isso como um impeditivo de se compor e executar uma boa música. Conheço músicos que não são tão virtuosos assim e podem executar peças belíssimas. Mas enfim... Divagações. Sobre esta questão ainda, pensei no caso de hinos tradicionais que já se distanciaram bastante de nosso português atual. Ok. Hinos tradicionais dizem o que outros não dizem mais, mas... Será que todo mundo entende o que são “vagas procelosas” quanto cantamos? Uma questão a se pensar...

Sobre a moldura e o quadro... De fato, a música litúrgica tem a característica de servir ao canto, à palavra, à congregação. Mas fico me perguntando sobre a construção do altar de Salomão... Qual a finalidade daqueles leões? E o templo, com todos aqueles ornamentos? Nem tudo tinha finalidade ou, pelo menos, a finalidade que enxergamos de imediato. Não me considero musicista, mas, possivelmente, por ter estudado um pouco de música, meu ouvido certamente se atrai pela moldura por si só ou pela pintura por si só. Entendo Shaeffer quando ele diz que Deus se interessa pela beleza. E, sim, a beleza (e aí, digo em sentido amplo) me leva a contemplar a Deus. Vale ressaltar que isso é apenas uma reflexão... Ainda não tenho resposta satisfatória sobre o lugar da contemplação na liturgia protestante. Talvez o piano, o violino e o banjo da igreja do interior de SP apontem caminhos...

Outro ponto abordado no vídeo trata da congregacionalidade. Questão muito relevante para se pensar. Vejo muitas canções serem executadas na igreja que não foram nem um pouco pensada para igreja. E aí, eu sou levada a apontar o dedo mesmo: músicas com linhas melódicas difíceis, uma tessitura musical que ora só voz feminina canta, ora só voz masculina. De fato, os instrumentistas precisam compreender que estão ali para a congregação cantar e ponto. O que tocar, então? Bem... Vou citar um exemplo do que eu faço. Eu tenho um registro de voz que alcança alguns graves e alguns agudos (mezzo). Eu executo a música e antes mesmo de ensaiar, peço para outras pessoas com registro de voz diferentes (homens, outras cantoras) cantarem. Se estiverem confortáveis, é bem mais provável que a igreja esteja. Mas esse é só um exemplo. O importante é realmente pensar o que fica mais digerível para toda a congregação. Nisso, fecho com os rapazes. Mas, antes de encerrar o ponto, pensando pelo lado didático, penso que a música, em si, traz aspectos que podem ser aprendidos também. Deixa eu ser mais específica: pensemos no trabalho de compositores que fugiram à ditadura 4/4 e, em suas igrejas, levaram lindas canções que a comunidade aprendeu e se habituou a cantar... Pensemos no baião de Bomilcar (salmo 150) que é um baião, mas se adequa perfeitamente ao canto comunitário. Isto só pra lançar a pergunta.

Por fim, a resposta. Acredito que seja meio que óbvio dizer que fica difícil usar qualquer/todos os ritmos para louvar a Deus. Por que não? Essa é uma questão bem complexa que envolve os aspectos cognitivos e culturais da música. Deixe-me pôr de uma forma mais simples. O rock. O que foi o rock na época e o que esse ritmo significava? Ao pensarmos nesta questão, nos vêm à mente toda uma rede de significados que são culturais. Disse uma vez um etnomusicólogo inglês, John Blacking, que o artista sintetiza o discurso de seu tempo e lugar. Nada poderia ser mais concreto. Eu não poderia fazer música tradicional japonesa porque não a conheço, não tenho proximidade nenhuma com ela. Sendo assim, é possível que se me apresentarem esse tipo de música e disserem que é louvor a Deus, eu acredite ou, ainda, se ela for feita para adorar outros deuses, eu a ouça e ela não me fira. Note que eu disse apenas “é possível”. Mas então... Antes de entrar no funk, vou pegar mais pesado. E o ponto de macumba? Será que um percussionista que tocava ponto e se converta vai conseguir continuar tocando ponto? E se tocar, vai conseguir louvar a Deus com esse ritmo? Nesse ponto, eu nem relativizo. É óbvio que não. Vários motivos, porque há toda uma rede de associações que vai remetê-lo a significados que o distancie de Deus. Há também a relação da música com a nossa psique. Alguns estudos que li (interessante ver o documentário do Oliver Sacks: Tales of music and the brain) apontam caminhos para a relação da música com nosso estado fisiológico e mental. Sabe aquela história de acalmar as vacas para elas ficarem com a carne menos contraída para o abate? Por aí... A música pode ser, sim, pensada para veicular e orientar estados de espírito. Penso que todo compositor cristão deveria refletir um pouco sobre isso.

Finalmente, pra fechar rs. Pelas razões descritas acima, eu vou discordar dos rapazes, ao menos, considerando o meu histórico de vida. É possível que se eu fosse francesa e ouvisse o funk carioca e gostasse, tal estilo poderia ser usado para louvor e adoração. Mas eu não sou rs. A batida, para mim, é imediatamente associada com vizinhos barulhentos, egoísticas (pois colocam o som alto pra eles) e moças do tipo “piriguetes” que pregam o oposto daquilo que acredito que uma mulher deveria ser. Não sinto o mesmo com o rock. Porque as associações que faço já são bem outras e, confesso, que gosto muito do som da guitarra rs.

Então é isso. Discussão longa. Longe de terminar por aqui... Que Deus nos ensine, sim, a contemplar o belo. Comecemos pela criação. Que toda a beleza que pudermos ver nos digam da grandiosidade de Deus, nosso Pai.


P.s: Segue o vídeo que originou esta postagem

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